Prioridade absoluta e proteção integral: como esses princípios caem na OAB?

Prioridade absoluta e proteção integral: como esses princípios caem na OAB?

Entenda como os princípios da prioridade absoluta e da proteção integral da criança e do adolescente são cobrados na 1ª fase da OAB.

Por Gustavo Cordeiro

Prioridade absoluta

Introdução

Os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta estão entre os temas mais cobrados no Exame de Ordem quando o assunto é Direito da Criança e do Adolescente. Consagrados no artigo 227 da Constituição Federal e materializados no ECA, esses princípios representam uma transformação fundamental no tratamento jurídico dispensado a crianças e adolescentes no Brasil.

A banca examinadora não busca memorização mecânica de dispositivos legais. O candidato deve demonstrar capacidade de aplicar esses princípios em situações concretas, identificando violações e propondo soluções juridicamente adequadas. Este artigo apresenta os conceitos essenciais e sua aplicação prática.

Proteção Integral: Da situação irregular ao novo paradigma

A Doutrina da Situação Irregular (Fase Tutelar)

Até 1990, vigorava no Brasil o Código de Menores de 1979, fundamentado na doutrina da situação irregular. Nesse período, a intervenção estatal limitava-se às crianças e adolescentes considerados em situação irregular – abandonados ou infratores.

Essa doutrina não diferenciava o menor infrator do abandonado. Uma criança em situação de vulnerabilidade social podia ser institucionalizada apenas por sua condição econômica, sendo considerada potencialmente perigosa em razão da pobreza.

O Juiz de Menores detinha amplos poderes discricionários, podendo determinar medidas sem garantir contraditório ou ampla defesa. Era um sistema que criminalizava a pobreza e violava direitos fundamentais.

A Doutrina da Proteção Integral (Fase Atual)

A Constituição Federal de 1988, a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o ECA (1990) inauguraram um novo paradigma: a doutrina da proteção integral. 

A doutrina da proteção integral mudou completamente a forma como o Direito trata crianças e adolescentes. O Estado agora protege TODAS as crianças e adolescentes, sem exceção.

Não importa se são ricas ou pobres, se têm família ou vivem na rua, se estudam em escola particular ou pública. Todos têm a mesma proteção. Acabou aquela história de só cuidar do “menor abandonado” ou “delinquente”.

Crianças e adolescentes deixaram de ser objetos e passaram a ser sujeitos de direitos.

O que isso significa? Que eles têm todos os direitos que os adultos têm, mais direitos especiais por estarem em desenvolvimento. A proteção integral garante esses direitos na prática. O objetivo é criar condições para que toda criança possa crescer e se desenvolver plenamente – no corpo, na mente, no caráter, em todas as áreas da vida.

As principais mudanças entre o Código de Menores de 1979 para o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 foram:

Doutrina da situação irregularDoutrina da proteção integral
Estado intervinha apenas em casos de “menores em situação irregular”Estado protege universalmente todas as crianças e adolescentes
Menores como objetos de tutela estatalCrianças e adolescentes como sujeitos de direitos
Condição socioeconômica justificava intervençãoProteção universal visando garantia de direitos

A responsabilidade passou a ser compartilhada entre família, sociedade e Estado, todos com o dever de assegurar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Os artigos do ECA sobre proteção integral

Art. 1º – “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”

Logo no primeiro artigo, o ECA deixa claro: a proteção é integral, ou seja, completa. Não é proteção parcial, não é só para alguns, não depende de condição social. É proteção total para todos os aspectos da vida de todas as crianças e adolescentes.

Exemplo prático: Uma escola não pode negar matrícula alegando que “só protege alunos de famílias estruturadas”. A proteção é integral – vale para filho de rico, de pobre, para quem tem família ou vive em abrigo, para quem tem deficiência ou não. Todos têm os mesmos direitos.

Art. 3º – Direitos fundamentais e desenvolvimento pleno

"A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade."

Este dispositivo estabelece que crianças e adolescentes possuem todos os direitos fundamentais dos adultos, acrescidos da proteção especial decorrente de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. O objetivo é garantir desenvolvimento pleno em todas as dimensões.

Exemplo prático: Adolescente trabalhador possui todos os direitos trabalhistas assegurados aos adultos (férias, 13º salário, FGTS), além de proteções especiais (proibição de trabalho noturno, em locais insalubres, obrigatoriedade de compatibilização com estudos). A criança tem direito à liberdade de expressão como qualquer pessoa, mas com proteção adicional contra exposição prejudicial em redes sociais.

Art. 100, parágrafo único, II – Proteção integral como princípio interpretativo

"São também princípios que regem a aplicação das medidas: II - proteção integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares"

Isso significa que, na dúvida sobre como aplicar o ECA, sempre escolha a interpretação que melhor protege a criança. É um princípio que orienta juízes, promotores, conselheiros tutelares e todos que trabalham com o ECA.

Exemplo prático: Juiz está decidindo sobre guarda compartilhada e tem dúvidas. Deve escolher a solução que melhor atende aos interesses da criança, não dos pais. O Conselho Tutelar avalia se aplica medida de advertência ou encaminhamento para tratamento. Deve escolher o que mais protege e ajuda no desenvolvimento integral da criança.

Como Proteção Integral e Prioridade Absoluta se Relacionam

A proteção integral define o conteúdo da proteção – abrange todos os direitos de todas as crianças e adolescentes. A prioridade absoluta estabelece a forma dessa proteção – sempre em primeiro lugar. São princípios complementares: a proteção integral perde efetividade sem a prioridade absoluta, e a prioridade carece de sentido sem a integralidade da proteção.

Princípio da Prioridade Absoluta no ECA

Disposição Geral (Art. 4º)

O artigo 4º do ECA é o mais importante quando falamos de prioridade absoluta. Ele diz que

"é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".

Perceba que todos são responsáveis (família, comunidade, sociedade e poder público), mas isso não significa que a responsabilidade fica diluída. Cada um deve fazer sua parte integralmente. O parágrafo único deste artigo explica exatamente o que significa essa prioridade absoluta, dividindo em quatro partes:

a) Primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias

Quando houver uma situação de perigo ou necessidade de socorro, crianças e adolescentes devem ser atendidos primeiro, sempre. Isso não é uma sugestão ou recomendação – é uma obrigação legal para todos, sejam agentes públicos ou particulares.

Exemplo prático: Imagine uma enchente onde os bombeiros encontram ao mesmo tempo uma criança de 6 anos e um adulto de 40 anos, ambos em perigo. A criança deve ser resgatada primeiro. Ou pense num acidente na estrada com várias vítimas e apenas uma ambulância: os menores de 18 anos devem ser socorridos primeiro. No pronto-socorro, se uma criança e um adulto têm o mesmo nível de gravidade, a criança passa na frente.

b) Precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública

Este dispositivo estabelece que crianças e adolescentes têm direito de atendimento prioritário em qualquer serviço público (federal, estadual ou municipal) e também em serviços privados de relevância pública (como hospitais particulares conveniados ao SUS). A precedência é objetiva e não comporta exceções baseadas em ordem cronológica ou critérios administrativos.

Exemplo prático: Criança com prescrição médica para fisioterapia pelo SUS tem precedência sobre adultos em mesma situação clínica, independentemente da ordem de encaminhamento. Em programa habitacional governamental, famílias com crianças têm preferência sobre casais sem filhos. Na fila de transplante, havendo compatibilidade técnica, criança de 8 anos precede adulto de 30 anos, ainda que este aguarde há mais tempo.

c) Preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas

Quando o governo for planejar e executar políticas públicas, deve pensar primeiro nas crianças e adolescentes. Isso vale desde o momento de fazer o orçamento até a hora de colocar em prática os programas sociais.

Exemplo prático: A prefeitura não pode construir um centro de convenções enquanto faltam vagas nas creches. A Secretaria de Saúde deve criar programa de acompanhamento de bebês antes de pensar em centro de estética para idosos. Nas reuniões dos conselhos municipais, assuntos sobre crianças e adolescentes devem ser discutidos primeiro.

d) Destinação privilegiada de recursos públicos

A prioridade orçamentária decorre naturalmente da prioridade absoluta. Os recursos públicos destinados a políticas para crianças e adolescentes devem ser especialmente protegidos. Em períodos de contingenciamento, esses recursos devem ser os últimos a sofrer cortes.

Exemplo prático: Em situação de redução de receitas, o município deve cortar primeiro despesas com publicidade institucional, eventos e cerimonial antes de reduzir recursos da merenda escolar ou medicamentos pediátricos. Lei orçamentária que destina mais recursos para turismo do que para educação infantil é passível de questionamento judicial. Emendas parlamentares não podem redirecionar verbas da área infantojuvenil para outras finalidades.

Prioridade na Adoção

O ECA criou um sistema de prioridades dentro dos processos de adoção, reconhecendo que algumas crianças têm mais dificuldade para encontrar uma família:

Art. 47, §9º – Prioridade processual para adotandos com deficiência ou doença crônica

"Terão prioridade de tramitação os processos de adoção em que o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou com doença crônica". 

O dispositivo busca reduzir o tempo de institucionalização daqueles que estatisticamente aguardam mais tempo por uma família.

Exemplo prático: Vara da Infância com 50 processos de adoção pendentes deve julgar prioritariamente o caso de Carlos, 12 anos, portador de paralisia cerebral, independentemente da ordem cronológica de distribuição. No Tribunal, recursos envolvendo adoção de adolescente com HIV devem ser pautados com precedência. O Ministério Público deve apresentar parecer com urgência nesses casos.

Art. 50, §15 – Prioridade no cadastro para interessados em adotar crianças especiais

"Será assegurada prioridade no cadastro a pessoas interessadas em adotar criança ou adolescente com deficiência, com doença crônica ou com necessidades específicas de saúde, além de grupo de irmãos". 

Aqui a lei dá um benefício para quem aceita adotar crianças que normalmente têm mais dificuldade de encontrar família.

Exemplo prático: Um casal que aceita adotar três irmãos juntos fica em destaque no Sistema Nacional de Adoção e é consultado antes de quem só quer adotar uma criança. Família que aceita adotar adolescente com esquizofrenia tem seu processo de habilitação acelerado e fica na frente quando o sistema busca pretendentes.

Prioridade para Famílias com Crianças com Deficiência

Art. 70-A, parágrafo único

"As famílias com crianças e adolescentes com deficiência terão prioridade de atendimento nas ações e políticas públicas de prevenção e proteção".

A lei reconhece que essas famílias precisam de mais apoio do Estado e por isso têm atendimento prioritário.

Exemplo prático: Família com filho autista passa na frente no CRAS para entrar em programas sociais, mesmo que outras famílias em situação parecida tenham chegado antes. Mãe de adolescente com Síndrome de Down é atendida primeiro na Defensoria Pública. Essa família também recebe com prioridade cadeira de rodas, próteses e remédios caros pelo SUS.

Prioridade Orçamentária

Art. 90, §2º

"Os recursos destinados à implementação e manutenção dos programas relacionados neste artigo serão previstos nas dotações orçamentárias dos órgãos públicos encarregados das áreas de Educação, Saúde e Assistência Social, dentre outros, observando-se o princípio da prioridade absoluta". 

Isso significa que o orçamento público deve respeitar a prioridade das crianças e adolescentes.

Exemplo prático: A Câmara de Vereadores não pode aprovar orçamento que diminui dinheiro para abrigos de crianças enquanto aumenta verba de gabinete. O governador não pode vetar recursos para creches alegando falta de dinheiro e mantém outros gastos menos importantes. O Tribunal de Contas deve reprovar as contas do prefeito que cortou verba da assistência infantil.

Prioridade no Registro Civil

Art. 102, §2º

"Os registros e certidões necessários à regularização de que trata este artigo são isentos de multas, custas e emolumentos, gozando de absoluta prioridade". 

O registro civil tardio constitui direito fundamental que deve ser garantido com máxima celeridade e gratuidade absoluta.

Exemplo prático: Adolescente de 17 anos que, ao alistar-se, descobre não possuir registro de nascimento, tem direito ao procedimento prioritário no cartório, sem aguardar na fila comum. O cartório não pode cobrar qualquer taxa, inclusive de urgência. As certidões devem ser expedidas no mesmo dia. O juiz corregedor que constatar demora pode aplicar sanções administrativas.

Prioridade Processual Judicial

Art. 152, §1º – Prioridade geral nos procedimentos do ECA

"É assegurada, sob pena de responsabilidade, prioridade absoluta na tramitação dos processos e procedimentos previstos nesta Lei". 

Atenção para “sob pena de responsabilidade” – significa que juízes e servidores podem ser punidos se não respeitarem a prioridade.

Exemplo prático: Juiz com 300 processos para decidir deve sentenciar primeiro a ação de guarda de criança de 3 anos, mesmo tendo processos mais antigos. O oficial de justiça deve cumprir primeiro o mandado de busca de adolescente em perigo. Servidor que demora para juntar documento urgente em processo do ECA pode responder processo administrativo.

Art. 199-C – Prioridade absoluta em recursos

“Os recursos nos procedimentos de adoção e de destituição de poder familiar, em face da relevância das questões, serão processados com prioridade absoluta, devendo ser imediatamente distribuídos, ficando vedado que aguardem, em qualquer situação, oportuna distribuição”. A lei é clara: é proibido deixar esses recursos esperando.

Exemplo prático: Apelação sobre perda do poder familiar que chega na sexta tem que ser distribuída no mesmo dia, não pode esperar segunda-feira. Agravo sobre acolhimento de criança não entra na distribuição normal da semana – tem que ser imediato. O desembargador relator deve colocar o recurso para julgamento na primeira sessão depois do parecer do MP, não pode deixar para sessão futura por conveniência.

Como a FGV cobra o Tema na OAB?

A banca examinadora privilegia questões práticas que testam a compreensão sobre a natureza absoluta desses princípios. São comuns situações envolvendo:

  1. Conflitos entre direitos: Casos em que a prioridade infantojuvenil colide com outros interesses aparentemente legítimos (igualdade, economia de recursos, organização administrativa).
  2. Hierarquização de vulnerabilidades: Quando há conflito entre grupos protegidos (criança versus idoso, por exemplo), a criança sempre tem precedência.
  3. Tentativas de relativização: Decretos ou portarias municipais que buscam criar exceções à prioridade absoluta são sempre inconstitucionais.
  4. Responsabilização: O descumprimento gera responsabilidade administrativa, civil e criminal dos agentes públicos.
  5. Legitimidade processual: Ministério Público, Defensoria Pública e os próprios interessados podem exigir judicialmente o cumprimento.

Pontos essenciais: a prioridade absoluta tem eficácia imediata, aplica-se a todos os serviços públicos e não admite exceções, nem mesmo em situações de crise ou calamidade.

Questão Simulada – Estilo FGV

Situação apresentada:

O prefeito de Esperança baixou decreto estabelecendo que, devido à grave crise financeira do município, os atendimentos médicos não urgentes no hospital municipal seguirão rigorosamente a ordem cronológica de inclusão na fila, “para garantir isonomia entre todos os munícipes”.

Pedro, 8 anos, aguarda há 4 meses por cirurgia de correção de fenda palatina. Durante esse período, diversos adultos que entraram na fila posteriormente já foram operados. Os pais de Pedro procuraram você, como advogado(a), para orientação jurídica sobre as medidas cabíveis.

Considerando as disposições do ECA sobre prioridade absoluta, assinale a orientação juridicamente correta:

A) O decreto municipal é válido, pois a isonomia é princípio constitucional que se sobrepõe às normas infraconstitucionais como o ECA.

B) Deve-se ingressar com ação judicial, pois a prioridade absoluta tem fundamento constitucional e não pode ser afastada por decreto municipal, devendo Pedro ter precedência no atendimento.

C) O decreto é juridicamente válido durante a crise fiscal, aplicando-se a teoria da reserva do possível que autoriza o município a estabelecer critérios objetivos de atendimento.

D) A prioridade absoluta aplica-se apenas a situações de urgência e emergência, não alcançando procedimentos eletivos como a cirurgia de Pedro.

Gabarito: B

Comentário: A orientação correta é o ingresso de ação judicial. O art. 4º, parágrafo único, alínea “b” do ECA garante “precedência de atendimento nos serviços públicos”. A prioridade absoluta tem fundamento constitucional (art. 227 da CF) e não pode ser afastada por decreto municipal. Não importa a alegação de crise financeira ou isonomia – a criança tem precedência absoluta. A ação pode ser mandado de segurança ou ação de obrigação de fazer, com pedido de tutela de urgência.

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